“Exu: Um Deus Afro-atlântico no Brasil” mostra as várias faces da divindade mais cultuada das religiões afro-brasileiras

Em Edusp

Por Divulgação

A divindade mais controversa que emergiu da confluência das culturas africanas, europeias e americanas é o tema do livro “Exu: Um Deus Afro-atlântico no Brasil”, lançamento da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) escrito pelo antropólogo Vagner Gonçalves da Silva. O autor analisa de diferentes pontos de vista as características do culto de Exu em nações afro-atlânticas, além de sua apropriação pelas denominações cristãs do catolicismo e, mais recentemente, do neopentecostalismo.

No dia 15 de setembro, a obra será lançada em um seminário no Centro MariAntonia da USP. Detalhes sobre o evento serão divulgados em breve em nosso site e redes sociais.

Vagner Gonçalves da Silva é professor associado e pesquisador do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP), tem pós-doutorado pela Harvard University e também pela City University of New York, desenvolvendo pesquisas sobre as populações afro-brasileiras, com foco em temas como religiosidade, relações entre religião e cultura brasileira, artes afro-brasileiras e representação etnográfica. É ainda coordenador do Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras (CERNe). 

Quais motivos o levaram a pesquisar Exu?
Vagner Gonçalves da Silva: Fiz uma pesquisa sobre intolerância religiosa e surgiu o tema da batalha espiritual, do ataque dessas igrejas às religiões afro-brasileiras. Quis também analisar esse processo e encontrei o protagonismo do Exu, que aparece nessas igrejas com a carapuça do Exu de terreiro, de demônio. Organizei um livro em que analisei o papel do Exu, uma coletânea publicada também pela Edusp, chamada “Intolerância Religiosa”.  Como tinha um conjunto de informações, resolvi trabalhar com essa divindade para minha tese de livre-docência. Levantei os mitos e tive a ideia de falar dos dois lados do gorro de Exu. Nesse mito, Exu passa entre dois amigos com um chapéu colorido, com uma cor diferente de cada lado, e causa uma confusão entre ambos. Então pensei em dividir essa tese em três partes: Exu no terreiro, Exu na Igreja pentecostal e as mitologias de Exu. Defendi a tese em 2013 e primeiro publiquei um pequeno livro pela editora Pallas, que é de uma coleção sobre os orixás. Mas, pelo tamanho e pela quantidade de material, tive dificuldade em encontrar uma editora comercial. A Edusp aceitou o desafio de produzir este livro, que é uma espécie de compêndio da presença de Exu no Brasil. 

Como define o sentido original de Exu na sua obra?
VGS: Na antropologia, é muito difícil falar de sentidos originais porque as mitologias são construídas ao longo do tempo. O religioso acredita que um livro sagrado, tal como é hoje, foi enviado por Deus ao homem. Mas não se discute a construção histórica da Bíblia, ou da Torá para os judeus, ou do Alcorão para os muçulmanos. Se é assim com tradições escritas, imagine nas orais. Então, é muito difícil falar em sentido original de Exu. O que se sabe é que ao longo do tempo esses sentidos foram transformados. Para saber o que é Exu na África, é preciso pegar o Exu de hoje, na África ocidental, na região com Nigéria, Benin e Togo, onde se tem a presença dos iorubás e fon-ewe, que são as grandes etnias que têm essa divindade – Exu para os iorubás e Legba para os fon-ewe –, associada ao movimento, à comunicação. E está muito associada à fecundidade, sendo muito representada em altares com pênis ereto. Não é algo sexualizado, mas ligado à reprodução, ao dinamismo da vida. Nas mitologias mais antigas que foram registradas por escrito, Exu nem mesmo aparece associado à criação do mundo. É no século XIX que aparece uma mitologia que o associa a isso. Na mitologia iorubá, o mundo foi criado por Olodumaré, que é um ser supremo que mandou dois tipos de entidade para criar o mundo: um grupo que se chama Igbalé, que são os orixás propriamente ditos, e outro que são os guardiões da natureza, que têm o conhecimento, chamado Irunmalé. Exu não é uma coisa nem outra. Em algumas mitologias, quando o mundo foi dividido assim, Exu ficou sem nada. Como era muito desordeiro, mandava o sol nascer à noite, a lua durante o dia, e confundiu toda a criação do mundo. Olodumaré, então, diz que Exu passa a ser o guardião do axé, da comunicação, a chave que une a todos, com o poder de falar de Olodumaré para os orixás, dos orixás para os homens e dos homens para os deuses. É assim que a mitologia de Exu passa a ser elaborada. E é por isso que, quando se vai fazer algo, é preciso primeiro saudar Exu. Ele é o mensageiro entre esses mundos e é por isso que o lugar preferencial dele é onde tem troca, como o mercado, a encruzilhada. Lanço algumas teorias no livro segundo as quais ele provavelmente passou a desempenhar essa função porque o cristianismo chegou à África com uma visão maniqueísta de bem e de mal, que considera todos os cultos maus, pagãos. Quando os cristãos veem uma entidade associada ao pênis, há uma associação entre Exu e o demônio. Não é que religiosos iorubás acreditem nisso, mas encontram uma forma de traduzir Exu para outro sistema religioso. Quando se veem as primeiras Bíblias traduzidas para o iorubá ou fon-ewe, Exu ou Legba é traduzido como “evil”, o mal (em inglês), o diabo. Mesmo o Alcorão traduzido para o iorubá o coloca como ash-Shaitan, o demônio. Evidentemente que essas sociedades foram impactadas pelo colonialismo, se cristianizando e absorvendo essa referência, e os iorubás, influenciados pelo cristianismo e pelo islamismo, passam a ver Exu como demônio. Sem essa influência, Exu é um deus como outro qualquer. Isso aconteceu na África, foi trazido para o Brasil e continuou pelas práticas de demonização às religiões de origem africana feitas pela Igreja católica.

Na sua pesquisa, quais são os motivos encontrados para Exu ser considerado como “lado do mau” ou “demônio” pelas religiões cristãs?
VGS: Não existe uma definição que possa ser considerada verdadeira. Para o cristão, Exu é o demônio pela crença de que há um bem e um mal. Mas, para um afro-brasileiro, Exu não é o demônio. Na umbanda ou em alguns candomblés, há figuras com nome de demônio, como Exu Belzebu, Exu da Meia-noite, Exu do Lodo e Exu do Cemitério, que podem xingar, ter garras, linguagem gutural, ter uma atitude que lembre o mal. Mas, se a pessoa pede a Exu que a ajude a curar uma doença ou a sair do desemprego, Exu vai procurar ajudar. Em troca, vai pedir uma garrafa de marafo, uma oferenda na encruzilhada ou algo assim. Já na tradição cristã, de um lado estão anjos, santos, Jesus, Deus, Santíssima Trindade, que são o bem. O mal é Lúcifer e, se ele é o mal, você não vai pedir algo para o demônio. Se pede, perde a alma. Nas tradições indígenas, africanas, não existe esse maniqueísmo. O bem e o mal são processos que interagem.

Por que considera Exu o mais controverso deus das culturas africanas, europeias e americanas?
VGS: As pessoas olham apenas por um lado, de como Exu foi demonizado pelo cristianismo. No livro, argumento que houve também um processo de “exuzização” do demônio. Esse demônio que estava restrito ao mal, nas tradições afro-brasileiras pode sair dessa posição e fazer o bem também. É importante não perder de vista que essas tradições africanas não foram apenas vítimas de um processo cultural, mas também impuseram uma forma de entender o mundo à religião do dominador. Traduziram nos seus próprios termos a visão do dominador. Quando analiso as imagens de Exu na umbanda, que tem o Exu do Lodo, Exu da Porteira, Exu do Cemitério, Exu da Meia-noite, começo a mostrar que o lodo é um intermediário entre a água e a terra. A porteira é a passagem entre o lado de dentro e o de fora. O cemitério é o lugar onde os vivos e os mortos se encontram. A meia-noite é a passagem de um dia para o outro. Todos esses nomes, embora possam ser jocosos para alguns, aludem a um princípio africano de passagem, mudança e dinamismo. Há ainda a associação que se faz de santos católicos com orixás. Tento combater no livro dois conceitos importantes: de sincretismo e de teoria do disfarce. Todas as religiões são sincréticas, mas chamam assim a religião do dominado. Nos primeiros séculos, o cristianismo era uma religião de escravizados, considerada pelas religiões de Estado como pagã. Há elementos do sincretismo. O Natal, por exemplo, é no solstício de inverno, e as festas juninas, no solstício de verão (no hemisfério norte). Chamar as religiões afro-brasileiras de sincréticas equivale a dizer que são confusas. São Jorge se confunde com Ogum e também com Oxóssi. Mas não é uma confusão, e sim uma correlação. Tanto que São Jorge é Oxóssi na Bahia e Oxóssi é São Sebastião no Rio de Janeiro. O motivo é que o sistema religioso africano tenta explicá-lo pelo sistema dos santos católicos. Oxóssi é um caçador e é como São Jorge se penso que ele caça o dragão. Se São Jorge guerreia contra o dragão, ele é como Ogum, que é o orixá da guerra. A mesma coisa aconteceu com Exu, que é o demônio segundo algumas tradições no Brasil, mas é o mensageiro entre os homens e os deuses segundo outras. Assim, pode ser associado a esse mensageiro, que, no sistema cristão, é Jesus. Quando se vai a Cuba, Exu é o Menino Jesus de Praga. Não é o demônio por lá. 

E qual o motivo do uso de Exu nas igrejas neopentecostais?
VGS: O sistema da Igreja católica pode ter sido repressivo às populações afro-brasileiras, mas o sistema cosmológico é muito mais relativista do que a instituição. Há a Santíssima Trindade e um grande panteão de seres intermediários, como Maria, santos, anjos e mártires. A reforma protestante no século XVI rompe com isso e diz que a pessoa precisa apenas de uma Bíblia para falar diretamente com Deus. O pentecostalismo surge de um sistema protestante que olha as práticas afro-brasileiras de maneira radical, e vem todo esse processo de intolerância. As igrejas neopentecostais começaram a atuar, desde os anos 1960, sobre uma população específica, que era praticante das religiosidades afro-brasileiras. E existe um processo de avivamento da religião, com características muito próximas das experiências religiosas afro-brasileiras ou africanas. É um culto que envolve música, dança, transe do Espírito Santo e fala em línguas. O neopentecostalismo, ao mesmo tempo que se apropria da demonização do Exu que já estava dada, faz com que esses Exus baixem nessas igrejas exatamente para mostrar o poder do pastor em relação ao pai de santo. É uma teologia construída no que chamo de “cosmogonias cruzadas”. Quem faz isso, sobretudo, é a Igreja Universal do Reino de Deus, que usa entidades como Exu e Pombagira, elementos materiais como sal, óleo e cajados, e até o que chama de ex-pais e mães de santo, que dão consultas. É quase como uma igreja macumbeira, com a mesma linguagem, mas invertendo a chave. O próprio Edir Macedo reconhece isso no livro “Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?”, uma pergunta quase retórica, porque ele vai dizer que são demônios. Ele diz que a pessoa pode pensar que a igreja é um lugar de macumba, mas que o demônio é que teria tirado essas coisas do cristianismo e levado aos terreiros. Ele usa inclusive versos bíblicos para isso. Há uma consequência, talvez a mais grave, porque isso sai das igrejas para as ruas, vira depredação de terreiros e agressões a pessoas que portam símbolos afro-brasileiros em espaços públicos. Temos ainda traficantes que se dizem evangélicos destruindo terreiros em comunidades do Rio de Janeiro e expulsando pessoas de suas casas. Há aí dois tipos de racismo: o religioso, por fazer a associação com o mal e o primitivismo, e a apropriação cultural, que é extinguir essas religiões ao associá-las ao sistema neopentecostal. O acarajé de Iansã vira bolinho do Senhor. Isso porque o acarajé e o ofício das baianas são bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Outro exemplo é a capoeira gospel, que corta a relação umbilical da capoeira com o terreiro. Há as baterias abençoadas, que tocam sambas dentro de um contexto pentecostal. São transformações que descaracterizam o produtor, que é a população negra, em relação ao seu produto. É um grande desserviço à cultura brasileira, que é formada por esses elementos. Há vários anexos no livro para mostrar a importância da divindade Exu para além do terreiro: nas escolas de samba, na música popular, na filmografia, em várias dimensões. 

Como a compilação de 183 mitos referentes a Exu ajuda a elucidar as noções sobre a divindade?
VGS: O objetivo é mostrar todas as dimensões possíveis que caracterizam Exu. Depois, faço uma análise e tento mostrar que esses mitos podem ser aglutinados. Eles não se referem somente a uma tradição iorubá, mas a uma tradição afro-atlântica. Existem os da tradição fon, da cubana, da brasileira, inclusive mitos que mostram o contato entre essas civilizações. Particularmente, gosto muito do que diz que o ser supremo mandou o filho, Jesus, para a Terra, mas sem ter feito o sacrifício de um cordeiro para Exu. Por isso, os homens não entenderam a mensagem dele e o mataram. Maria tentou fazer o sacrifício, mas Exu disse que já era tarde. O filho do ser supremo morreu como um cordeiro e a tradição cristã também chama Jesus de Cordeiro de Deus. É um mito que diz que há três grandes categorias: deuses, homens e animais. Há religiões que sacrificam animais para os deuses, para que os homens sejam felizes, que são as de tradição africana. Há religiões que optam por matar os deuses para que os homens sejam felizes, como o cristianismo. São mitologias que acabam nos ensinando que existem graus de humanidade.

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